domingo, 15 de agosto de 2010

Os titulos chamativos dos jornais ....

É só um artigo velhinho de estrela serrano no DN de 15/06/2003



"O sentido das palavras", copyright Diário de Notícias, 15/6/03
"O tratamento jornalístico do processo Casa Pia continua a provocar algumas perplexidades nos leitores e a dar origem a controvérsia. Seria, aliás, estranho que assim não fosse, uma vez que os media são um dado incontornável nas discussões sobre o funcionamento da justiça e da actividade política.
Os leitores do DN estão atentos aos múltiplos aspectos da cobertura deste caso e não deixam sem reparo os que lhes suscitam dúvidas.
O leitor Costa Antunes questionou o facto de a manchete que menciona João Soares (26/5) ‘relativa ao ‘caso Moderna’, vir escarrapachada na primeira página, na coluna Pedofilia’ e Sandra Cardoso manifesta o seu ‘descontentamento’ com a manchete Herman processa Balsemão, afirmando sentir-se ‘enganada’, uma vez que esse título ‘mostra uma certeza (...), não coloca apenas uma hipótese’. Segundo a leitora, ‘no interior do jornal, o título da notícia não mostra a mesma convicção’, falando, antes, ‘na possibilidade de o apresentador processar o grupo Balsemão’. Sandra Cardoso afirma que ‘o DN é um jornal de referência’, do qual se espera ‘rigor no tratamento noticioso’, o que, a seu ver, não aconteceu. Analisemos cada um destes casos no contexto em que surgiram.
Começando por Sandra Cardoso, é justa a observação que faz sobre a diferença entre a certeza do título da primeira página – Herman processa Grupo Balsemão e a incerteza do título da notícia no interior do jornal – Herman pode processar SIC.
O leitor Costa Andrade, ao ler a manchete João Soares ataca Portas e Santana – que julgou referir-se ao ‘caso Moderna’ – enquadrada no antetítulo Rede de pedofilia – ficou perplexo, por não associar esses nomes a Rede de pedofilia. A manchete referia-se, contudo, a uma (alegada) intervenção do ex-presidente da Câmara de Lisboa na reunião do secretariado nacional do seu partido, a propósito da detenção do deputado Paulo Pedroso. Este episódio foi referenciado pelo DN como integrando-se na Rede de pedofilia, como aliás, aconteceu com outros. Se não, vejamos:
O DN tem usado insistentemente ao alto da primeira página, a enquadrar as manchetes sobre o processo da Casa Pia, o antetítulo Rede de pedofilia. Esta frase tem servido como referência de títulos como: Juiz confirma prisão de Ritto (21/5); João Soares ataca Portas e Santana (26/5); Convocados (referindo-se a Ferro Rodrigues e Herman José) (27/5); Advogado de Pedroso com acesso a escutas (28/5); Juiz pode deixar processo (29/5) e muitos outros. Contudo, nalguns dias esse ante-título é substituído por Caso Casa Pia e Processo Casa Pia ou mesmo suprimido. No interior do jornal, os desenvolvimentos destas manchetes não seguem o mesmo modelo de titulação, surgindo antetítulos como Escândalo da pedofilia, Caso Casa Pia ou Rede de pedofilia ou apenas Pedofilia.
Ora, a primeira página é o ‘rosto’ do jornal e, portanto, o primeiro contacto (visual) do leitor com o jornal. A primeira página pode levar leitores a comprá-lo ou a rejeitá-lo e, a atestar a sua importância está o facto de ela ser da exclusiva responsabilidade da direcção. Deve merecer toda a atenção e cuidado, não apenas quanto às manchetes, mas também quanto aos elementos que as enquadram.
Os títulos de primeira página estão sujeitos a limitações e constrangimentos que decorrem do formato e do grafismo do jornal, obrigando a simplificações e supressões que visam estimular a curiosidade do leitor, muitas vezes, sacrificando o rigor da informação. Já os antetítulos, quando existem, incluem apenas uma ou duas palavras, funcionando como elementos ‘referenciais’ e ‘códigos’ de leitura do texto a que se referem. Tal como o título, o antetítulo ‘diz’ sempre qualquer coisa sobre o tema a que está ligado, constituindo, para o leitor, uma ‘instrução de leitura’. O antetítulo ‘julga’ o texto antes de este ser lido, reenviando-o a uma informação anterior.
Não é indiferente escolher como antetítulo a frase Rede de pedofilia, em vez de Processo Casa Pia ou Caso Casa Pia – para citar alguns dos utilizados pelo DN –, uma vez que o sentido dessas frases não é idêntico. Acresce que algumas das manchetes referenciadas sob Rede de pedofilia misturam os estatutos e os papéis das pessoas mencionadas, de pouco servindo que os pós-títulos e os desenvolvimentos das páginas interiores reponham os factos e devolvam a cada protagonista o seu papel.
Uma análise da primeira página do DN nas últimas semanas, mostra, contudo, que o antetítulo Rede de pedofilia é aplicado sem critério visível a vários acontecimentos e protagonistas com intervenção no caso, não se vislumbrando, por parte do jornal, uma intenção de incluir na ‘rede’ alguém em especial.
Contudo, a escolha desse antetítulo parece não ter em conta os efeitos da associação repetida dessa frase aos nomes a que surge referenciada. Segundo o critério que tem sido aplicado, qualquer figura pública que se pronuncie sobre o processo Casa Pia corre o risco de ver o seu nome referenciado a Rede de pedofilia na capa do DN.

Bloco-Notas
Discutir o jornalismo – Apesar da exposição e do escrutínio público permanente a que os jornalistas estão sujeitos, não apreciam discutir o seu trabalho com pessoas de fora do seu ‘campo’ profissional. Em tempos de crise, o jornalismo é tema de grandes discussões públicas e de alguma autocrítica, mas raramente se discutem as regras e os princípios em que os jornalistas baseiam as decisões que tomam. É significativo, por exemplo, que no debate público sobre o processo Casa Pia, um campo tão fechado e complexo como a justiça tenha vindo a expor e discutir o seu funcionamento, e que muitos jornalistas quando questionados sobre as suas responsabilidades respondam com argumentos do género ‘nós fazemos o nosso trabalho’, ou ‘não se diga que os jornalistas é que têm a culpa’, ou ‘limitamo-nos a reportar a realidade’. Alguns editoriais têm adoptado, também, a mesma filosofia.


Jornalismo de fontes – O processo da Casa Pia constitui um excelente ‘laboratório’ para o estudo das relações entre o jornalismo, a política e a justiça. Não se trata apenas de questões tão largamente debatidas como a quebra do segredo de justiça ou as ‘fugas orientadas’. Mas, esse é, talvez, o exemplo mais evidente de uma certa promiscuidade na relação entre os jornalistas e as partes intervenientes neste processo. Essa promiscuidade é favorecida pelo sistema comercial em que operam os media, caracterizado por uma competição (quase) sem limites. Com efeito, os jornalistas (e todos os que intervêm no debate público) condenam a quebra do segredo de justiça, mas, ao mesmo tempo, é nessa quebra que apoiam quase toda a informação que divulgam. Na cobertura jornalística do processo Casa Pia, não se pode, em rigor, falar de jornalismo de investigação. O que existe é jornalismo de fontes.

Uso de escândalos – O tratamento jornalístico de escândalos foi estudado há alguns anos pelos investigadores americanos H. Molotch e M. Lester, que analisaram o ‘uso estratégico de escândalos’. Dizem estes autores que ‘um escândalo exige a cooperação voluntária de, pelo menos, uma parte com poder e legitimidade decorrentes da sua experiência ‘em primeira mão’ – por exemplo, uma testemunha ocular – ou da sua posição na estrutura social – por exemplo, um ‘informador’ que promove a fuga de informação. Esta capacidade está, geralmente, nas mãos de elites com ‘homens de confiança’ estrategicamente situados’. Os autores afirmam que ‘quando o ‘informador’ pertence a um status baixo, e não é apoiado por um grupo com poder, a produção do escândalo é difícil, senão impossível. Mas, se pessoas de status elevado fazem ‘delações’ – por exemplo, ‘um líder político que empreende uma luta para eliminar um oponente’ – a produção do escândalo torna-se fácil’. O estudo é de 1975 e está publicado em Portugal no livro de N. Traquina, Jornalismos: Questões, teorias e ‘estórias’."



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